domingo, 27 de abril de 2008

O Mito da Caverna

O MITO DA CAVERVA

Para explicar o movimento de passagem de um grau de conhecimento para outro, no livro VII da República, Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do conhecimento e da paideía platônicas.

Para dar a entender ao jovem Glauco o que é e como se adquire o conhecimento verdadeiro, Sócrates começa estabelecendo uma analogia entre conhecer e ver.

Todos os nossos sentidos, diz Sócrates, mantêm uma relação direta com o que sentem. Não é esse, porém, o caso da visão. Para que a visão se realize, não bastam os olhos (ou a faculdade da visão) e as coisas coloridas (pois vemos cores e são elas que desenham a figura, o volume e as demais qualidades da coisa visível), mas é preciso um terceiro elemento que permita aos olhos ver e às coisas serem vistas: para que haja um visível visto é preciso a luz. A luz não é o olho nem a cor, mas o que faz com que o olho veja a cor e que a cor seja vista pelo olho. É graças ao Sol que há um mundo visível. Por que as coisas podem ser vistas? Porque a cor é filha da luz. Por que os olhos são capazes de ver? Porque são os filhos do Sol: são faróis ou luzes que iluminam as coisas para que se tornem visíveis. A visão é, assim, uma atividade e uma passividade dos olhos. Atividade, porque é a luz do olhar que torna as coisas visíveis. Passividade, porque os olhos recebem sua luz do Sol.

Conhecer a verdade é ver com os olhos da alma ou com os olhos da inteligência. Assim como o Sol dá sua luz aos olhos e às coisas para que haja mundo visível, assim também a idéia suprema, a idéia de todas as idéias, o Bem (isto é, a perfeição em si mesma) dá à alma e às idéias sua bondade (perfeição) e é por isso que a alma pode conhecer as idéias. E assim como a visão é passividade e atividade da olho, assim também o conhecimento é passividade e atividade da alma: passividade, porque a alma precisa receber a ação das idéias para poder contemplá-las; atividade, porque essa recepção e contemplação constituem a própria natureza da alma.

Assim como na treva não há visibilidade, assim também na ignorância não há verdade. A eikasía e a dóxa são para a alma o que a cegueira é para os olhos e a escuridão é para as coisas: são privações (privação da visão e privação de conhecimento)

Sob a analogia da luz, a diferença entre o sensível e o inteligível se apresenta assim:

MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL

Sol_____________________________________________Bem

Luz_____________________________________________Verdade

Cores____________________________________________Idéias

Olhos____________________________________________Alma racional ou inteligência

Visão_____________________________________________Intuição

Treva, cegueira,privação de luz_________________Ignorância, opinião, privação de verdade

Essa analogia é o tema do Mito da Caverna, narrado por Sócrates a Glauco para fazê-lo compreender o sentido da paideía filosófica, isto é, da dialética e do conhecimento verdadeiro.

Imaginemos, diz Sócrates, uma caverna subterrânea separada do mundo externo por um alto muro. Entre este e o chão da caverna há uma fresta por onde passa alguma luz exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali estão acorrentados, sem poder mover a cabeça na direção da entrada, sem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede de fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo exterior nem a luz do Sol, sem jamais ter efetivamente visto uns aos outros, pois não podem mover a cabeça nem o corpo, e sem se ver a si mesmos porque estão no escuro imobilizados. Abaixo do muro, do lado de dentro da caverna, há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz com que as coisas que se passam do lado de fora sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Do lado de fora, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras ou imagens de homens, mulheres, animais cujas sombras também são projetadas na parede da caverna, como num teatro de fantoches. Os prisioneiros julgam que as sombras de coisas e pessoas, os sons de suas falas e as imagens que transportam nos ombros são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam.

Nesse ponto, Glauco diz a Sócrates que o quadro descrito por ele lhe parece algo estranho, incomum, e inusitado. Sócrates, porém lhe diz que os prisioneiros “são semelhantes a nós”. E prossegue. Os prisioneiros se comunicam, dando nomes às coisas que julgam ver (sem vê-las realmente, pois estão na obscuridade) e imaginam que o que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora, são as vozes das próprias sombras e não dos homens cujas imagens estão projetadas na parede e também imaginam que os sons produzidos pelos artefatos que esses homens carregam nos ombros são vozes de seres reais. Qual é, pois, a situação dessas pessoas aprisionadas? Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coisas e dos homens exteriores como as sombras dos artefatos fabricados por eles. Essa confusão, porém, não tem como causa a natureza dos prisioneiros e sim as condições adversas em que se encontram. Por isso Sócrates indaga: que aconteceria se fossem libertados dessa condição de miséria e, “retornando à sua natureza, pudessem ver as coisas e ser curados de sua ignorância?”.

Essa pergunta é grave. De fato, para os prisioneiros, o único mundo real é a caverna, portanto, a obscuridade na qual não podem se ver nem ver os outros não é percebida como tal e sim experimentada como realidade verdadeira. E a caverna é para eles todo o mundo real, pois não sabem que o que vêem na parede do fundo são sombras de um outro mundo, exterior à caverna, uma vez que não podem virar a cabeça para ver que há algo lá fora e que é de lá de fora que outros homens lhes enviam imagens e sons. Ora, se para os prisioneiros o mundo real é caverna, como poderiam sair da ilusão se não sabem que vivem nela?

Um dos prisioneiros, inconformado com a condição em que se encontra, decide abandoná-la. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. De início, move a cabeça, depois o corpo todo; a seguir, avança na direção do muro e o escala. Enfrentando as durezas de um caminho íngreme e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados. Enche-se de dor por causa dos movimentos que seu corpo realiza pela primeira vez e pelo ofuscamento de seus olhos sob a ação da luz externa, muito mais forte do que o fraco brilho do fogo que havia no interior da caverna. Sente-se dividido entre a incredulidade e o deslumbramento. Incredulidade porque será obrigado a decidir onde se encontra a realidade: no que vê agora ou nas sombras em que sempre viveu. Deslumbramento (literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não conseguem ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu primeiro impulso é retornar à caverna para livrar-se da dor e do espanto. Embora esteja reconquistando sua verdadeira natureza, o sofrimento que essa reconquista lhe traz é tão grande que se sente atraído pela escuridão, que lhe parece mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse aprendizado é doloroso, fazendo-o desejar a caverna, onde tudo lhe é familiar e conhecido.

A descrição platônica é dramática: o caminho em direção ao mundo exterior é íngreme e rude; o prisioneiro libertado sofre e se lamenta de dores no corpo; a luz do sol o cega; ele se sente arrancado, puxado para fora por uma força incompreensível. Platão narra um parto: o parto da alma que nasce para a verdade e é dada à luz.

Sentindo-se sem disposição para regressar à caverna por causa da rudeza do caminho, o prisioneiro permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, tem felicidade de finalmente ver as próprias coisas, descobrindo que estivera prisioneiro a vida toda e que em sua prisão vira apenas sombras. Doravante, desejará ficar longe da caverna para sempre e lutará com todas as suas forças para jamais regressar a ela. No entanto, não pode evitar de lastimar a sorte dos outros prisioneiros e, por fim, toma a difícil decisão de regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos demais o que viu e convencê-los a se libertarem também.

Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era ingrato e a luz, ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se à luz. De volta à caverna, o prisioneiro fica cego novamente, mas, agora, por ausência de luz. Ali dentro, é desajeitado, inábil, não sabe mover-se entre as sombras nem falar de modo compreensível para os outros, não sendo acreditado por eles. Torna-se objeto de zombaria e riso, e correrá o risco de ser morto pelos que jamais se disporão a abandonar a caverna. (...)

A caverna, explica Sócrates a Glauco, é o mundo sensível onde vivemos. O fogo que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (do Bem e das idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas verdadeiras, e as imagens ou sombras dessas sombras, criadas por artefatos fabricadores de ilusões. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele vê é a luz plena do ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível como o Sol ilumina o mundo sensível. O retorno à caverna para convidar os outros a sair dela é o diálogo filosófico, e as maneiras desajeitadas e insólitas do filósofo são compreensíveis, pois quem contemplou a unidade da verdade já não sabe lidar habilmente com a multiplicidade das opiniões nem mover-se com engenho no interior das aparências e ilusões. Os anos despendidos na criação do instrumento para sair da caverna são o esforço da alma para libertar-se. Conhecer é, pois, um ato de libertação e de iluminação. A Paidéia filosófica é uma conversão da alma voltando-se do sensível para o inteligível. Essa educação não ensina coisas nem nos dá a visão, mas ensina a ver, orienta a olhar, pois a alma, por sua natureza, possui em si mesma a capacidade para ver.

O Mito da Caverna apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do olhar intelectual que nos livra da cegueira para vermos a luz das idéias. Mas descreve também o retorno do prisioneiro para convidar os que permaneceram na caverna a sair dela, ensinando-lhes como quebrar os grilhões e subir o caminho. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou opinião, desta para as matemáticas e destas para a intuição intelectual e a ciência; e o do descenso (a dialética descendente), que consiste em praticar com outros o trabalho para subir até às idéias.

Os olhos foram feitos para ver, a alma foi feita para conhecer. Os primeiros estão destinados à luz solar, a segunda, à fulguração da idéia. A dialética é a técnica libertadora dos olhos do espírito.

O relato da subida e da descida expõe a paideía como dupla violência necessária para a liberdade e para a realização da natureza verdadeira da alma: a ascensão é difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade, é um esforço para obrigar um dýnamis a se atualizar, um trabalho para concretizar um fim, forçando um ser a realizar sua própria natureza. No Mito, a dialética leva a alma a ver sua própria essência ou forma (eîdos) __, isto é, conhecer__ vendo as essências ou formas (eíde __ isto é, os objetos do conhecimento __, para descobrir seu parentesco com elas, pois a alma é parente da idéia como os olhos são parentes da luz.

p. 257-262

A INTERPRETAÇÃO DO MITO DA CAVERNA POR HEIDEGGER

(...) O Mito da Caverna, começa Heidegger, estabelece uma relação interna ou intrínseca entre a paideía e a alétheia : a filosofia é educação ou pedagogia para a verdade. Essa relação é proposta pelo mito com a analogia entre os olhos do corpo e os olhos do espírito quando passam da obscuridade à luz: assim como os primeiros ficam ofuscados pela luminosidade do Sol, assim também o espírito sofre um ofuscamento no primeiro contato com a luz da idéia do Bem, que ilumina o mundo das idéias. A trajetória realizada pelo prisioneiro é a descrição da essência do homem (um ser dotado de corpo e alma) e sua destinação verdadeira (o conhecimento intelectual das idéias). Essa destinação é seu destino: o homem está destinado à razão e à verdade. Por que, então, a maioria dos homens permanece prisioneira da caverna? Porque suas almas não recebem a paideía adequada à destinação humana. Assim, a paideía, alegoricamente descrita no mito, é “uma conversão do olhar”, isto é, a mudança na direção de nosso pensamento, que, deixando de olhar as sombras (pensar sobre as coisas sensíveis), passa a olhar as coisas verdadeiras (pensar nas idéias). E, observa Heidegger, não foi por acaso que Platão escolheu a palavra eîdos para designar as idéias ou formas inteligíveis, pois eîdos significa figura e forma visíveis, e a idéia é o que o olho do espírito, educado, torna-se capaz de ver. A idéia do Bem, correspondente ao Sol, não só ilumina todas as outras tornando-as todas visíveis para o olho do espírito, mas é também a idéia suprema, tanto porque é a visibilidade (inteligibilidade) plena como porque é a causa da visibilidade (inteligibilidade) de todo o mundo inteligível. A filosofia, conhecimento da verdade, é conhecimento da idéia do Bem, princípio incondicionado de todas as essências. Assim como o Sol permite aos olhos ver, assim o Bem permite à alma conhecer. A luz é a mediação entre aquele que conhece e aquilo que se conhece.

Empregando a metáfora da visão, continua Heidegger, o Mito da Caverna preserva o antigo sentido da alétheia como não-esquecimento e não-ocultamento da realidade, pois alétheia é o que é arrancado do esquecimento e do ocultamento, fazendo-se visível para o espírito, embora invisível para o corpo. A verdade é uma visão, visão da idéia, isto é, do que está plenamente visível para a inteligência e, por ser visão plena, a verdade é evidência: um visível inteiramente visto, sem sombras e sem obscuridades, é evidente; um vidente que tudo vê, sem que nada lhe escape e nada lhe fique escondido, possui a evidência.

É exatamente essa concepção da verdade como evidência, argumenta Heidegger, que dá ao Mito da Caverna ainda um outro sentido com o qual compreendemos por que Platão é o inventor da razão ocidental.

De fato, na origem, a palavra alétheia é uma palavra negativa (a-létheia), significando o não-esquecido, não-escondido. Isso pressupunha que a verdade era inesgotável, oferecia-se pouco a pouco e jamais completamente nem de uma só vez, permanecia com um fundo esquecido e escondido do qual, de vez em quando, algo surgia e se manifestava, fazendo-se não-esquecido e não-escondido. Com o Mito da Caverna, porém, a verdade, tornando-se evidência, torna-se visibilidade plena e total, abandona o antigo sentido negativo da a-létheia para ganhar um sentido positivo ou afirmativo. Em lugar de dizermos que o verdadeiro é o não-escondido, Platão nos leva a dizer que a verdade é o plenamente visível para o espírito, aquilo de que nada permanece escondido ou oculto. Que significa isso? Significa que a verdade deixa de ser o próprio ser se desocultando ou se manifestando aos homens para tornar-se uma operação (a mais alta e mais importante) da razão humana que, pelo olhar intelectual, apreende a idéia como essência inteiramente vista e contemplada, sem sombras. A verdade, diz Heidegger, se transfere da ação do próprio ser (que se mostrava parcialmente aos homens) para a ação da alma, que tudo vê e alcança o todo do ser. Deixando de ser uma aparição sobre um fundo permanente de ocultamento (pois o ser não cessava de se manifestar porque nele sempre permanecia um fundo oculto inesgotável, um não-visível ou um invisível essencial), a verdade torna-se o conhecimento total e pleno da idéia do Bem. Com isso, escreve Heidegger, a verdade dependerá, de agora em diante, da razão humana.

Qual é a pedagogia proposta pelo Mito da Caverna? A educação do olhar. Ou seja, a verdade, doravante, dependerá do olhar correto, que olha na direção certa __ não olha para o interior da caverna, mas para fora e para o alto __, e dependerá do olhar exato e rigoroso __ que não olha sombras opacas e indecisas, mas realidades claras, distintas, delimitadas, nítidas. Exatidão, rigor, correção são as qualidades e propriedades da razão, no Ocidente. A verdade e a razão são theoría, contemplação das idéias quando aprendemos a dirigir o intelecto na direção certa, isto é, para o conhecimento da essência das coisas. Dessa maneira, conclui Heidegger, Platão destruiu o antigo conceito da verdade, no qual era o próprio ser que se manifestava no mundo e ao mundo, e o substituiu por aquele que prevalecerá no pensamento ocidental, o inteligível e a inteligência, obtida apenas pelas operações da própria alma. Platão teria, assim, iniciado o processo do destino ocidental, a saber, colocar o homem com primazia sobre o ser. (...)

p. 262-264

O MITO DO ER OU A REMINISCÊNCIA

É preciso explicar como, vivendo no mundo sensível, alguns homens sentem atração pelo mundo inteligível. Como, nunca tendo tido contato com o mundo das idéias, jamais tendo contemplado as idéias, algumas almas as procuram? De onde vem o desejo de sair da caverna? Mais do que isso, como os que sempre viveram na caverna podem supor que exista um mundo fora dela, se os grilhões e o alto muro não deixam ver nada externo? Em outras palavras, como explicar que vivendo entre simulacros, crenças e opiniões, os homens possam supor que existe algo além deles e que esse algo é a verdade, se jamais a viram? E como explicar, quando têm o contato com uma idéia verdadeira, que saibam que ela o é? Para decifrar esse enigma, Platão, na República, narra o Mito de Er, também conhecido como o Mito da Reminiscência, da anámnesis, que vimos ser inseparável da antiga idéia da alétheia (o não-esquecido).

O pastor Er, da Panfilia, é conduzido pela deusa até o Hades, o reino dos mortos, para onde, segundo a tradição grega, sempre foram conduzidos os poetas e adivinhos ou videntes. Ali, Er encontra as almas dos mortos serenamente contemplando as idéias. Devendo reencarnar-se, as almas serão levadas para escolher a nova vida que terão na Terra. São livres para escolher a nova vida terrena que desejam viver. Após a escolha, são conduzidas por uma planície onde correm as águas do rio Léthe (o esquecimento). As almas que escolheram uma vida de poder, riqueza, glória, fama ou uma vida de prazeres, bebem água em grande quantidade, o que as faz esquecer as idéias que contemplaram. As almas dos que escolhem a sabedoria quase não bebem das águas e por isso, na vida terrena, poderão lembrar-se das idéias que contemplaram e alcançar, nesta vida, o conhecimento verdadeiro. Desejarão a verdade, serão atraídas por ela, sentirão amor pelo conhecimento, porque, vagamente, lembram-se de que já a viram e já a tiveram. Não esquecem dela e por isso, para elas, ela é a a-létheia, não-esquecida.

A verdade como lembrança e o conhecimento como reminiscência já aparecera, como vimos, num diálogo da juventude, o Mênon. Enquanto na República o Mito de Er complementa o Mito da Caverna respondendo à pergunta “Como quem vive desde sempre na aparência e na ilusão pode sair em busca da verdade?”, no Mênon, a reminiscência é apresentada para responder à pergunta “Como, ao encontrar uma verdade, sabemos que a encontramos?”. Nas duas ocasiões, a resposta de Platão __”conhecer é lembrar” __ consiste em afirmar que a alma aprendeu, antes da encarnação, tudo aquilo de que ela, novamente, adquirirá o conhecimento, de sorte que investigar e aprender é reativar um saber total que se encontra em estado latente na razão. Procurar e aprender é reencontrar um saber já adquirido que está esquecido. O filósofo dialético, como o médico que faz o paciente lembrar-se, suscita nos outros a lembrança do verdadeiro. Se já não tivéssemos estado diante da verdade, não só não poderíamos desejá-la como, chegando diante dela, não saberíamos identificá-la, reconhecê-la. No entanto, buscar e aprender não é simplesmente um esforço de memória, mas um trabalho de investigação realizado com instrumentos adequados e guiados pelas exigências de certeza e fundamentação do que se conhece ou se aprende. Além disso, as idéias não são entidades isoladas umas das outras e sim relacionadas entre si por laços necessários de concordância recíproca, de tal maneira que ao recordar uma idéia ou ter a intuição intelectual dela, a alma também se recorda de outras ligadas a esta primeira e intui conjuntos de idéias verdadeiras, adquirindo a epistéme.

O que se passa com o escravo do Mênon nos ajuda a compreender o processo de busca e aprendizado como investigação e recordação da verdade. Sócrates pede ao escravo que indique o comprimento do lado de um quadrado cuja superfície seja o dobro da superfície de um quadrado dado. Sócrates não espera que o escravo demonstre o Teorema de Pitágoras nem que faça cálculos numéricos envolvidos pelo teorema, uma vez que está envolvido com a complexa questão dos números desproporcionais ou dos irracionais. O que Sócrates espera? Simplesmente uma construção geométrica elementar. Antes de chegar à resposta correta (a diagonal do quadrado dado é a linha sobre a qual deverá ser construído o segundo quadrado para ser o dobro do primeiro), o escravo oferece duas respostas incorretas, que ele abandona, em cada caso, graças às perguntas de Sócrates, que lhe permitem reconhecer-se como ignorante. Reconhecida a ignorância, o escravo, ainda uma vez guiado pelas perguntas socráticas, começa a raciocinar sobre os dados do problema, buscando dentro de si mesmo ou de sua razão a resposta, até encontrá-la sozinho. Porque a encontra por si mesmo, sem haver recebido lições de geometria, Sócrates dirá que o escravo lembrou-se de algo que já sabia e que estava latente em sua alma. Ora, o que é então, lembrar-se? É exercer o pensamento para que este, por si mesmo, encontre uma verdade. Assim sendo,

A reminiscência, entendida como estado mental da rememoração, permite saber aquilo de que nos lembramos no momento em que nos lembramos disso. Nesse sentido, ela é um processo com duas faces: ao mesmo tempo reativação de um conteúdo latente ou recordação (anámnesis) e verdadeira aprendizagem quando referimos essa lembrança à consciência de ignorância que o precedeu. Longe de ser uma busca desordenada no seio das lembranças, o esforço de rememoração visa a uma verdade já possuída que orienta implicitamente tal esforço (M. Canto-Sperber “Platon”, in M. Canto-Sperber, org., p.216).

Os intérpretes se dividem muito acerca do significado do Mito do Er. Seria uma alegoria para dizer que os homens nascem dotados de razão, que as idéias são inatas ao seu espírito, que a verdade não pode vir da sensação, mas apenas do pensamento? Ou seria uma primeira apresentação da teoria platônica da imortalidade da alma que será exposta no Fédon? Por enquanto deixaremos a questão em suspenso e a ela voltaremos quando analisarmos a psicologia platônica. Aqui enfatizaremos dois pontos.

Em primeiro lugar, Platão, através de dois mitos __o da caverna e o de Er __, recupera a antiga noção da alétheia (o não-esquecido), ainda que a transforme profundamente, pois para um pensamento que toma a verdade com evidência, o verdadeiro não pode ser apenas a ação do ser sobre uma alma passiva, mas exige a atividade desta última, sua iniciativa para ter a retidão do olhar espiritual, isto é, capaz da correspondência entra a atividade cognitiva da alma e da idéia. O verdadeiro é a relação entre a inteligência e verdade. Em segundo, Platão precisa recorrer aos mitos para explicar por que, sem possuirmos conhecimentos verdadeiros, desejamos o conhecimento verdadeiro. Precisa explicar que, de algum modo, já estamos na posse de alguma noção (ainda que muito vaga) da verdade e que é ela que nos empurra para a dialética. Assim, independentemente da discussão sobre o que Platão realmente pensava dos mitos que narrou, podemos dizer que possuem a função de afirmar que nascemos no verdadeiro e destinados a ele. Sem isso, a dialética seria uma técnica impossível, pois não teria o que atualizar em nossa alma, não encontraria uma dýnamis para realizar sua obra. Os dois mitos significam que há na alma a tendência para o verdadeiro, mesmo que ela não esteja de posse da verdade.

p. 265-268

Glossário de termos gregos

Paideía: Educação ou cultivo das crianças, instrução, cultura. O verbo paideúo significa: educar uma criança (paîs-paidós em grego), instruir, formar, dar formação, dar educação, ensinar os valores, os ofícios, as técnicas, transmitir idéias e valores para formar o espírito e o caráter, formar para um gênero de vida. Da mesma família é a palavra Paidéia, ação de educar, educação, cultura.

Eikasía: Representação, imagem, conjetura, comparação. O verbo eikázo significa: representar, desenhar os traços, retratar, pintar a imagem, comparar uma coisa com outra semelhante, conjeturar sobre uma coisa a partir de outra. O verbo eíko significa: ser semelhante, assemelhar, parecer, ter o ar de. Da mesma raiz vem eikón: ícone, imagem (retrato, pintura, escultura), imagem refletida no espelho, simulacro, fantasma. Para Platão, as coisas sensíveis são como o eikón e por isso o grau mais baixo do conhecimento é a eikasía.

Dóxa: Opinião, crença, reputação (isto é, boa ou má opinião sobre alguém), suposição, conjetura. Esta palavra possui dois sentidos diferentes por ser usada em dois contextos diferentes: o contexto político, no qual foi usada inicialmente, e o contexto filosófico, a partir de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokéo, que significa 1) tomar partido que se julga mais adequado para uma situação; 2) conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3) escolher, decidir, deliberar e julgar segundo os dados oferecidos pela situação e segundo a regra ou norma estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na assembléia dos guerreiros que deu origem à assembléia política, na democracia. Como a escolha e decisão se davam a partir do que era percebido, dito e convencionado pelo grupo, dóxa ganha também o sentido de uma modalidade de conhecimento e, agora, articula-se ao verbo doxázo, que significa: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer, conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admitidas. É neste segundo sentido que dóxa pode ter o sentido pejorativo de conhecimento falso, preconceito, conjetura sem fundamento, sem convenção, arbitrária.

Dýnamis: Aptidão, capacidade, faculdade, potencialidade, ou possibilidade para alguma coisa. Força da natureza, força moral, fecundidade do solo, eficácia de um remédio, valor de uma moeda, valor ou significado de uma palavra. Força militar. Força e poder para influenciar o curso de alguma coisa. É da mesma raiz do verbo dýnamai que significa: 1) ter poder para, ter capacidade e autoridade para; 2) ter valor, ter significação; 3) na matemática: elevar um número ao quadrado, ao cubo, aumentando sua potência; 4) potência. Quando usado como verbo impessoal significa “é possível”. A dýnamis se refere a um poder, a uma força ou potência de alguém ou de alguma coisa a quem torna possível certas ações. É possibilidade ou capacidade contida na natureza da coisa ou da pessoa. Em Aristóteles, significa aquilo que um ser pode vir a tornar-se no tempo, graças a uma potencialidade que lhe é própria. Na filosofia aristotélica, é a razão e racionalidade do devir, o poder para ser, fazer ou tornar-se alguma coisa.

Eîdos ou Idéa: Inicialmente, na linguagem comum dos gregos, significa o aspecto exterior e visível de uma coisa: a forma de um corpo, a fisionomia de uma pessoa. A seguir, na linguagem filosófica (com Platão), passa a significar a forma imaterial de uma coisa, a forma conhecida apenas pelo intelecto ou pelo espírito, a idéia ou a essência puramente inteligível de uma coisa. Significa também a forma própria de uma coisa que a distingue de todas as outras, seus caracteres próprios; por exemplo, a doença é um eîdos, uma forma que o médico reconhece. A palavra eîdos vem de uma raiz que aparece sob três formas: eid-, oid- e id-. De eid- forma-se além de eîdos, o verbo eídomai, que significa: mostrar-se, fazer-se ver. De oid- forma-se oîda (infinitivo eidénai), perfeito do verbo ver que significa saber (por ter visto), conhecer. De id- forma-se o aoristo do verbo ver, ideîn e o substantivo idéa com o mesmo sentido de eîdos: aspecto externo, aspecto visível, forma visível, caracteres próprios de alguma coisa, maneira de ser. Com Platão, idéa passa a significar: princípio geral de classificação dos seres, forma ideal concebida pelo pensamento. Com Aristóteles, idéa significa conceito abstrato diferente das coisas concretas. Eîdos, a forma inteligível, idéa o conceito, ideîn, ver, e oîda / eidénai, saber (por ter visto), conhecer, criam a tradição filosófica do conhecimento como visão intelectual ou visão espiritual, e da verdade como visão plena ou evidência. A idéia é a realidade verdadeira que o pensamento vê. Em oposição a eîdos está eídolon: imagem, reprodução, cópia, ídolo, fantasma, simulacro.

Alétheia: Verdade, realidade. Palavra composta pelo prefixo negativo a- e pelo substantivo léthe (esquecimento). É o não-esquecido, não-perdido, não-oculto; é o lembrado, encontrado, visto, visível, manifesto aos olhos do corpo e ao olho do espírito. É ver a realidade. É uma vidência e uma evidência, na qual a própria realidade se revela, se mostra ou se manifesta a quem conhece. A palavra grega difere de duas outras que vieram, com ela, formar a idéia ocidental da verdade: a palavra latina veritas, que se refere à veracidade de um relato; e a palavra hebraica emunah, que significa confiança numa palavra divina. Alethés, o verdadeiro, significa: o não-esquecido, o não-escondido; donde: sincero, veraz, justo, equitável, verídico, franco ou não-dissimulado.

Theoría: Teoria, ação de ver, observar, examinar para conhecer; contemplação do espírito, meditação, estudo; especulação intelectual por oposição à prática. Deriva-se do verbo theoréo: observar, examinar, contemplar. Inicialmente, este verbo se refere aos espectadores que contemplam os jogos olímpicos e os comandantes que passam em revista as tropas. A seguir, passa a significar os que contemplam com os olhos da inteligência ou do espírito e, portanto, que examinam as idéias, conceitos, essências, com o significado de raciocinar, pensar, demonstrar, julgar, meditar e refletir. A teoria é o conhecimento pelo conhecimento, sem preocupação com seu uso instrumental, com sua aplicação, com as técnicas.

Anámnesis: Ação de trazer à memória ou à lembrança; lembrança, recordação. Reminiscência. Na prática médica, o momento em que o paciente auxilia o médico no diagnóstico, lembrando-se de todos os acontecimentos que antecederam a doença e todos os sintomas do início da doença. Platão faz da reminiscência o centro da teoria do conhecimento, momento em que o intelecto se recorda de haver contemplado a verdade ou as idéias que já se encontram na alma como idéias inatas, isto é, idéias com que nascemos e de que precisamos lembrar.

Epistéme: Ciência; conhecimento teórico das coisas por meio de raciocínios, provas e demonstrações; conhecimento teórico por meio de conceitos necessários (isto é, daquilo que é impossível que seja diferente do que é; o que não pode ser de outra maneira, ser diferente do que é) e universais (isto é, válidos pra todos em todos tempos e lugares). Opõe-se à empeiría. O verbo epístemai, da mesma família de epistéme, significa: saber, se apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este verbo não distinguia nem separava epistéme e empeiría, mas referia-se a todo conhecimento obtido pela prática ou pela inteligência, referia-se à habilidade). A seguir, passa a significar: conhecer pelo pensamento, ter um conhecimento por raciocínio e, com Aristóteles, passa a significar investigar cientificamente.

Sobre a autora:

Marilena Chauí é professora de história da filosofia e de filosofia política na Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1967, ano em que defendeu sua tese de mestrado sobre Marleau-Ponty e iniciou, na França, seus estudos sobre a filosofia de Espinosa. Além de desenvolver atividades acadêmicas, tem participado ativamente da vida política do país. Fez sua afirmação de Espinosa, de que a felicidade é a alegria de um corpo e de um espírito capazes de viver a multiplicidade simultânea de afetos e idéias.

Texto retirado do livro:


Autora: Marilena Chauí
Título: Introdução à história da Filosofia
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2002

Esse livro é um livro introdutório pra filosofia, pra iniciantes (como eu) e por isso não possui uma linguagem pesada, pelo contrário, a linguagem é bem leve e gostosa. O subtítulo do livro é: dos pré-socráticos a Aristóteles. A autora traça uma panomara geral do nascimento da filosofia, problematiza a origem da filosofia como sendo oriental ou grega, fala dos principais filósofos que antecederam Socrates, e também fala bastante de Platão e Aristóteles. É um excelente livro pra quem quer começar a estudar ou conhecer um pouco de filosofia!

Nenhum comentário: